"Percepção da desigualdade social, do preconceito de classe e da humilhação cotidiana, a gente que é pobre aprende a ter desde que nasce"
 

Lula, nosso querido e amado presidente

É tanta coisa para dizer, tanta revolta, tanta vontade em confortá-lo, tanta gratidão que não cabem numa carta.

Bem, vou começar contando minha história, nossa história, que só mudou e drasticamente para melhor porque o Brasil teve o senhor como presidente. Não fosse isto, continuaríamos condenados a uma ordem social excludente que se perpetua e se reproduz desde os tempos mais remotos.

sou professora de história, casada com Rodrigo, professor de sociologia. Temos dois filhos. Nasci em 1976 e, desde então, venho acompanhando – ora como expectadora, ora como pesquisadora, ora esperançosa, ora inconformada – nossa história recente.

Adolescente nos anos 1980, já tinha idade suficiente para entender, ao menos superficialmente, o movimento das Diretas Já e a comoção em torno da morte de Tancredo. Da ditadura militar sofri os rescaldos como sofremos até hoje, ela sempre a nos assombrar.

No governo Sarney, era eu que revessava com a minha mãe as idas, cada vez mais custosas, ao mercadinho do bairro, isto para comprar latas de óleo, arroz, feijão, em quantidades limitadíssimas. Que tempos... Menina, cansei de descascar batatas e guardar as cascas para fritar também. Carne, frutas e verduras era tudo muito restrito na mesa do pobre. Bem diferente do que acontecia recentemente, no seu governo e no da presidenta Dilma, quanto comer não era mais uma luta diária nem havia mais tantas restrições no cardápio. Hoje, infelizmente, não se pode dizer mais a mesma coisa, o custo de vida está pela hora da morte e, mais triste, sem expectativas de mudanças a curto prazo. Mas seguimos firmes, com fé na vida, fé no homem, fé no que virá...

Nessa época, minha mãe separou-se do meu pai que bebia muito e passou a trabalhar como empregada doméstica para, sozinha, alimentar, vestir e educar os dois filhos. Como o salário de zeladora numa escola não era suficiente para cobrir as despesas, ela arrumou um segundo emprego na sede do PT, em Londrina. Quando não tinha com quem deixar os filhos, levava a gente ao trabalho. Acho que foi nessa época que eu comecei a ter consciência do mundo da política, porque percepção da desigualdade social, do preconceito de classe e da humilhação cotidiana, a gente que é pobre aprende a ter desde que nasce, em cada olhar atravessado, em cada não recebido.

Quando chegou o vestibular quis muito entrar no curso de direito, mas todo esforço de uma estudante de escola pública, que começara a trabalhar com 13 anos e, desde então, passara para o turno da noite não foi suficiente para concorrer a mesma vaga com estudantes de escolas particulares, com famílias estruturadas, com aulas de línguas, música, dança, com experiências de viagens e consumo, com tempo disponível. As vezes penso que, se mais pessoas como eu tivessem tido, nessa época, oportunidade de ingressarem nos cursos de direito das universidades públicas, através de políticas voltadas para o ingresso de negros e egressos da escola pública como as implementadas no seu governo e no de Dilma, talvez o Judiciário fosse, hoje, uma instituição mais arejada, justa e responsável e não um instrumento de manutenção de privilégios e do ‘status quo’, atuando com mão de ferro contra uns, mesmo sem provas, e fechando os olhos para outros, com provas em abundância, agindo à revelia da Constituição e de acordo com os ventos instáveis da política. Mas, claro, não descarto a possibilidade de, assim, tivesse sido, ter me transformado em mais uma advogada, juíza, promotora integrada ao sistema, servindo a sua manutenção contínua e perpétua.

Nessa época, imperava entre nós uma ideia muito poderosa que, no seu governo e na presidência de Dilma, foi perdendo força, até se transformar no que é hoje, uma espécie de “lenda urbana”, a tal meritocracia. Acreditávamos, nos fizeram acreditar, que experiências múltiplas, dos mais pobres aos mais ricos, podiam ser justamente niveladas com formas igualitárias de acesso aos setores públicos. Sinceramente, não entendo como ficamos presos nessa armadilha durante tanto tempo...

Acabei ingressando num curso menos concorrido, mas que eu igualmente passei a amar e no qual eu pude realizar-me como professora, educadora e desenvolver o senso crítico acerca da realidade que nos cerca. No curso de história dediquei-me ao máximo, mesmo trabalhando 8 horas diárias para, a partir dele, romper com as amarras de classe que eu e outros tantos brasileiros estávamos condenados, simplesmente por termos nascido pobres. Fiz mestrado, doutorado, pós-doutorado, este 2 vezes, estudei nas melhores universidades públicas do país, tive bolsa de estudos, morei na França. Tudo isto graças às mudanças – estruturais, de mentalidade, que seu governo e o de Dilma promoveram.

Nossos primeiros empregos na universidade pública foi numa federal criada no seu governo, numa das regiões mais pobres do país, o Vale do Jequitinhonha. Passamos no concurso num dos momentos mais difíceis das nossas vidas, tínhamos terminado o doutorado e, por isto, não encontrávamos emprego nas instituições particulares que raramente contratam doutores, na mesma época em que tivemos nossa primeira filha.

Nessa época, não foi só nossa realidade que mudou, acompanhamos a mesma mudança acontecer na vida de muitos estudantes daquela região e como é compensador vê-los desbravando novos caminhos, mundo afora. Temos ex-alunos em todas as partes, fazendo pós-graduação, trabalhando em museus, laboratórios, agências internacionais.

Nessas idas e vindas entre Diamantina, onde ficava o Campus, e o Paraná, onde visitávamos nossas famílias nas férias, acompanhamos também as obras do PAC. Só quem vivenciou essas mudanças no Brasil profundo, sabe o impacto que teve seu governo e o da presidenta no dia a dia dessas populações e nas mais variadas instâncias da vida nacional.

Hoje, leciono História do Brasil numa universidade do Paraná e continuo presenciando o impacto das mudanças implementadas no seu governo e no de Dilma, dentro e fora da universidade. Por mais conflitos que existam e que bom porque é uma prova de que não estamos mais empurrando nossos problemas mais sensíveis (como da desigualdade racial e o racismo) para debaixo do tapete e a sociedade, hoje, vê-se diante da necessidade de discuti-los e superá-los e, nesse contexto, a universidade, felizmente, tem sido palco dessas mudanças.

Em protesto à perseguição que o senhor vem sofrendo diuturnamente, sem trégua, no dia 10 de maio de 2017, dia do seu depoimento em Curitiba, filiei-me formalmente ao PT. Se por trás de tudo isto está o projeto de aniquilamento do PT no Brasil, vamos renascer mais fortes e unidos contra a ameaça à democracia, ao estado de direito e à ofensiva fascista.

Sei que muita gente não consegue ou se nega a enxergar todas as mudanças ocorridas no Brasil a partir dos anos 2000. Ou porque nunca passaram necessidade na vida e precisam garantir os privilégios cristalizados ao longo da história, ou porque estão suficientemente influenciados pelas mídias hegemônicas e seus agentes, a Rede Globo especialmente, ou porque nasceram nos anos 1990 e sequer têm a dimensão do que foram as décadas anteriores quando imperava a violência de Estado e a experiência de escassez. Como disse Mujica, as gerações são incapazes de aprender com as experiências de outras gerações, infelizmente. Daí a dificuldade delas em compreender o impacto do seu governo e a situação atual, pois sua percepção social está atrelada a um período de desenvolvimento. Daí também a relativização que elas têm feito de regimes autoritários/ totalitários e até de políticas de extermínio/ tortura, muitas vezes estimuladas por pessoas irresponsáveis, de natureza fascista, que se apresentam como paladinos da moral, entoando palavras de ordem, quando, na realidade, não passam de fanfarrões da República, de brutamontes... de merda.

De qualquer forma e independente disto, gostaria que soubesse que tem uma multidão de pessoas ao seu lado e que estamos lutando, cada um ao seu modo, pela sua libertação, não vamos descansar até vê-lo retomar sua trajetória de luta, para a qual sempre esteve predestinado. Isto deve acontecer em breve dada a inconstitucionalidade da sua prisão. Queremos crer que vivemos numa democracia, frágil, porém uma democracia, e que nossa luta não é nem nunca será em vão, que servirá para consolidá-la diante de mais um golpe (que espero seja o último) em curso nesse país.

Que nossos filhos e entes queridos não sofram, no futuro, as consequências da nossa passividade diante das perdas, sucessivas e sistemáticas, de direitos sociais, civis e políticos nem tenham vergonha de quem fomos nem de como agimos ou não agimos diante de tudo que está acontecendo, já que não agir, na situação atual, é também uma ação.

Espero que essa carta chegue ao seu destino, às mãos do maior presidente deste país, e não seja interceptada confirmando o que muitas pessoas têm denunciado há algum tempo, isto é, a estruturação de uma ditadura no Brasil de novo porte, com as instituições mais respeitáveis (ou que deveriam ser) a seu serviço, com velhos atores aliando-se a novos sujeitos, nacional e internacionalmente.

D. Mariza e sua mãe estão, em algum lugar, lhe protegendo, zelando pelo filho mais nobre dessa nação. Assim como nós, nas ruas, nos lares, nas capitais, nas pequenas e grandes cidades, nos lugares mais distantes desse país. Como ideia, o senhor está em todos os lugares, fazendo pensar, e como semente germina vigorosamente nas nossas mentes e corações.

Agradeço por mim, minha família, meus amigos, meus colegas e meus alunos tudo o que o senhor fez e ainda irá fazer pelo povo brasileiro, mesmo que parcela dele não mereça nem tem consciência da sua magnitude, do grande presidente que o senhor foi e, temos fé, ainda será.

Por fim, o que me resta pedir agora é que aguente firme aí que, enquanto isso, a gente segura as pontas por aqui.

Com saudade, com tristeza, porém com fé, com esperança, estamos ao seu lado, presidente. Receba nosso carinho e amor, nosso afeto e ternura.

Um grande abraço dessa família que muito lhe estima e que luta por um país melhor, onde a igualdade não seja apenas uma palavra vazia de sentido e de significado e onde os sonhos não envelheçam nunca.





Curitiba, 9 de abril de 2018.

Em Tempo: O senhor não sabe, mas meu segundo filho é seu afilhado. Que são Francisco lhe proteja e esteja ao seu lado porque, já sabemos, o Papa está.




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